Segura o Cordão

DE ARCOVERDE AO RECIFE, À YOKOHAMA E BUENOS AIRES Localidade de São Domingos, no município de Arcoverde, sertão de Pernambuco: Seu Né, o último remanescente do bando de cangaceiros liderado por Virgulino Lampião, recebe a visita de familiares que acabam de chegar do Recife. Trazem consigo o primeiro CD gravado por Tiné, seu neto-sobrinho – um jovem de classe média educado na capital – e ao soar a primeira faixa do disco, o já idoso Seu Né se levanta da cadeira, se põe a dançar e exclama: “Isso é que é música!!” Cerca de seis meses depois de lançado o CD, um produtor musical japonês, Makoto Kubota, em visita ao Brasil com a finalidade de conhecer mais a fundo o carnaval e a música produzidas em Pernambuco, se encanta com o disco e resolve incluir a faixa “Vento Corredor” (composta por mim e por Tiné) na coletânea Nordeste Atômico, Vol.1, lançada no Japão em 2005. Participam da coletânea 13 artistas pernambucanos e 01 paraibano. Em 2006, a cantora argentina Florencia Bernales, também em visita a Pernambuco para conhecer o carnaval e a produção musical do Estado, descobre o CD já citado e decide regravar a mesma “Vento Corredor” no seu próximo disco que será dedicado à interpretação e à recriação de canções latino-americanas, contemplando compositores consagrados como o venezuelano Simón Diaz e o brasileiro Elomar, mas também abrindo espaço para canções e músicos ainda desconhecidos para além do seu local de origem. Que CD é esse? Quem é esse Tiné? Você tem razão em estar se questionando, afinal de contas o disco em questão, apesar de relativamente conhecido pelo público da região metropolitana do Recife e da região de Arcoverde, é praticamente inédito no resto do país. E é justamente esta a razão que me levou a escrever este texto: tentar torná-lo um pouco mais acessível ao público brasileiro... e mundial. Este disco nasceu de uma idéia inusitada, imaginada por Tiné, de estabelecer uma parceria entre os nossos ofícios de compositor e arranjador. Partindo das melodias vocais e das letras criadas por ele, escolhi a instrumentação e compus as partes dos coros, das cordas, dos sopros e da percussão, definindo a estrutura formal das canções, de modo que os arranjos se tornassem quase que inseparáveis das composições. Natural de Arcoverde, mas criado em Recife, Tiné manteve o vínculo afetivo com a sua cidade natal, podendo assim, assimilar a impressionante musicalidade do Samba de Coco Raízes de Arcoverde, e ao mesmo tempo se aventurar na multiplicidade de informações que a cena musical da capital permite absorver. Tendo como referência fundamental a tradição musical do sertão (o samba de coco, o baião de viola) e outras formas musicais que lhe são familiares (o choro e o samba, por exemplo), procurei criar uma música que demonstrasse claramente essas influências, ao mesmo tempo em que abrisse caminhos e idéias originais, e até mesmo estranhas a essas tradições. Um elemento importantíssimo nesse processo foi a técnica de contraponto. Utilizada há séculos por compositores eruditos com extrema complexidade, pois consiste no emprego de duas ou mais melodias simultâneas ao invés do simples acompanhamento, mas também utilizadas em formas populares como o próprio choro, esta técnica possibilita um notável enriquecimento da textura musical e foi o principal método de composição empregado nos arranjos. Mas tudo isto soaria falso se não ficasse clara a qualidade das composições e o talento dos músicos convidados, revelando amplo domínio e experiência no trato com as formas musicais abordadas aqui. Assim tornou-se possível esse disco, trilhando o caminho da elaboração, sem prejuízo da fluência e da naturalidade tão vitais para a música brasileira. Caçapa. Recife, fevereiro de 2004. Texto extraído do encarte do CD “Segura o Cordão”. Muitos ouvintes (inclusive alguns daqueles que admiram o disco) referem-se ao “Segura o Cordão” como sendo um disco de música regional, ou roots, como preferem outros. Acredito que esta classificação, ou rótulo, carrega um tom um tanto pejorativo e reducionista que atrapalha um pouco a justa apreciação do seu valor (ou da sua falta de valor, decida você mesmo!) como obra musical, e talvez até afaste um público em potencial (mesmo que este seja pequeno) em Pernambuco e no Brasil. É claro que o disco demonstra uma inegável fidelidade ao espírito da tradição musical brasileira, e especialmente a do sertão nordestino; mas também é fato que outros elementos e processos musicais foram fundamentais para o resultado final (fato este que não interfere necessariamente no seu valor artístico, é bom lembrar). Ao lado da força rítmica do samba de coco e do baião, da sonoridade áspera das violas, do modalismo melódico e harmônico, encontra-se a técnica de composição nascida na Europa e que exige consciência e raciocínio no trato com o material musical (o contraponto); encontra-se a idéia (disseminada pelo rock dos anos 60) do ábum conceitual, na qual todas as partes, e até mesmo a ordem das faixas, influenciam no resultado final; encontra-se a utilização de ferramentas digitais fundamentais para o processo de composição dos arranjos: o software para editoração de partituras e a linguagem MIDI para criar as “plantas baixas” e as “maquetes” sonoras apresentadas aos músicos convidados antes das gravações. E mais importante do que tudo isso: como explicar a indentificação imediata de um japonês, de uma argentina e de um ex-cangaceiro ao entrarem em contato com o disco? Será que isto é mesmo música regional? Texto escrito por Caçapa e publicado no site Overmundo em 23/11/2006. As participações especiais ficam por conta do Samba de Coco Raízes de Arcoverde; do rabequeiro Siba; dos cantores Maciel Salu, Isaar, Alessandra Leão, Karina Buhr (Comadre Fulozinha) e Dona Cila do Coco; do cantor e compositor Nilton Jr. (O Pandeiro do Mestre); do flautista Sérgio Campelo (Sa Grama); do baixista e compositor Hugo Linns; dos percussionistas Gilson Filho (Bonsucesso Samba Clube) e Sidclei (Ticuqueiros e Isaar); e do vocalista Maneco. Em 2005, o produtor japonês Makoto Kubota inlcui a faixa "Vento Corredor"(Tiné e Caçapa) na coletânea "Nordeste Atômico Vol.1" dedicada à música produzida atualmente em Pernambuco. Neste mesmo ano o DJ Bruno Pedrosa incluiu, na coletânea "Transformer", um remix da faixa "Cobrinha", criado por Gabriel Furtado especialmente para este projeto. Em 2006 a faixa "Cobrinha" foi incluída na coletânea "What's Happening in Pernambuco" lançada nos Estados Unidos pelo selo Luaka Bop, criado por David Byrne (ex-Talking Heads). Em 2007, a faixa "Vento Corredor" foi escolhida pessoalmente pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho para fazer parte da coletânea "Projeto Quadrante: A Pedra do Reino", lançada nacionalmente pela Som Livre.
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